quinta-feira, 5 de junho de 2008

Nos trilhos do esquecimento


Por Juliana Brito e Pery Negreiros

O próximo trem para Caucaia sai às 9h20min. À essa altura da manhã, o terminal ferroviário João Felipe já viu muita gente passar por ali desde que o sol deu as caras para um novo dia. Em sua maioria, gente apressada. Tem também aqueles que não parecem ter compromisso algum e, excessivamente despreocupados, até se dão ao luxo de tirar um cochilo enquanto esperam o trem fazer a manobra para se encaixar nos vagões traseiros. E, finalmente, há aqueles que parecem não estar indo a lugar algum, estando ali apenas para entrar no primeiro vagão que encontrarem. Seria, talvez, um meio de fuga de alguém ou de alguma coisa, com destino para lugar nenhum.

É nesse ritmo, ora frenético, ora modorrento, que milhares de anônimos passam diariamente pela antiga estação de trem, fundada no longínquo ano de 1873. O prédio é uma dos pouquíssimos elementos da história de Fortaleza que insistem em lembrar um passado mais distante, uma testemunha inerte do que a cidade foi um dia. Uma estação que também é quase anônima, pois é comum perceber a surpresa de alguns, quando informados de que há ainda trens com passageiros circulando pela Região Metropolitana. Para nós, confessamos, foi a primeira viagem de trem. Fato (quase) justificável apenas porque as duas linhas metropolitanas (Caucaia e Vila das Flores) disponíveis nunca fizeram parte de nosso itinerário, normalmente concentrado na Aldeota, Meireles, Papicu, Fátima, Centro, entre outros lugares onde o trem não chega. Trata-se de uma experiência fascinante andar de trem pela primeira vez. Para os que vivem o dia-a-dia no terminal ferroviário, o cenário não surpreende há muito tempo. Ninguém deseja notar ninguém. Todos parecem concentrados apenas em seus afazeres do dia. Enquanto isso, ficamos, a olhar, fascinados, o entra e sai do vagão. Uma Fortaleza que não conhecíamos até hoje.

Assim que chegamos, sentamos num banco, perto da porta de saída. Um trem acabou de chegar. Pessoas passam na catraca e seguem rumo à saída da estação. Com o vento, é possível sentir uma mistura muito intensa de cheiros. Vários perfumes diferentes pousam em nossas narinas. As pessoas nos olham, como se estranhassem nossa presença naquele lugar. João, Pedro, Maria, Joaquim, Francisca.. anônimos que provavelmente acabaram de sair de casa, sem esquecer de passar a lavanda que costumam usar diariamente.

No guichê, escolhemos nosso destino: a Linha de Caucaia. Seguiremos o rumo das estações Padre Andrade, São Miguel, Parque Albano, Jurema, Araturi, Caucaia, depois tudo de novo, só que em sentido oposto.

Ao contrário de um motorista de ônibus, o maquinista não consegue ver quem entra e quem sai do trem. Ele não tem como esperar as pessoas subirem, olhando pelo retrovisor. O trem não espera por ninguém!

A segurança do local parece estar bem resguardada. Há muitos agentes da Guarda Municipal observando o movimento. Um deles vem até a porta e pede para uma mulher tirar os pés do banco, para que mais pessoas possam se acomodar. O guarda dá o recado e sai, sem saber se foi atendida sua solicitação. A mulher o ignora e continua com os pés onde estavam, enquanto pede para dar uma olhada na câmera fotográfica que portamos. "Se preocupa não que não vou roubar... É só pra olhar"...

O vagão que escolhemos é o último. Engraçado como é organizada a posição dos passageiros. Mais uma vez, é inevitável a comparação: diferentemente do ônibus, onde as cadeiras são dispostas em seqüência, no trem urbano, ficamos sentados lado a lado por toda a extensão da composição, cada lado do vagão com um banco, nos posicionando de frente para outros passageiros. Invariavelmente somos pegos fitando o olhar de quem está logo à frente. Isto favorece sobremaneira os observadores.

A observação seguinte é quase pertinente, se não redundasse numa explicação quase óbvia: "por que as janelas são todas gradeadas?" A solução para o mistério criado por nossa ingenuidade provinciana vem em poucos minutos. Uma passageira comenta com alguém que num determinado trecho é comum alguns "moleques" jogarem pedras em direção aos vagões. Desta maneira, torna-se imperativo que o aspecto dos carros seja mesmo próximo a de um tanque de guerra, onde pouco se vê do lado de fora das janelas. Não há muito o que observar no caminho. Aquelas imagens que nos acostumamos a ver em trens de filmes encenados na Europa, com enormes janelas oferecendo belas paisagens aos borbotões, nada têm de similar com as que vemos na linha de Caucaia. No pouco revelado pelo cúbiculo, que sequer pode ser chamado de janela, a paisagem não nos insinua muita variedade. São apenas casas parecidas umas com as outras, fios elétricos e mato, muito mato.

Essa sensação inevitável de clausura provoca a curiosidade de alguns passageiros desavisados. Um rapaz à nossa frente comenta com a moça sentada a seu lado: "faz uns quatro anos, vi um moleque prender a cabeça na porta. Ele ficou de uma estação até a outra enganchado pelo pescoço. Foi uma luta pra tirar!" Parece piada de mau gosto, mas um repeteco do relato feito há pouco acontece diante de nossos olhos. Um homem de muletas resolveu colocar a cabeça para fora da porta, provavelmente para aliviar o tédio da viagem sem janelas. A porta se fecha de repente. A mobilização é imediata. vários homens correm para ajudá-lo, enquanto outras pessoas tentam, desesperadamente, gritar para os que estão na plataforma da estação onde estamos avisarem o maquinista. "Ele tá morrendo!!", grita uma mulher, outra já está aos prantos, chocada com a imagem. Após algumas centenas de metros percorridos, o trem finalmente pára e a porta se abre. Exausto, o homem procura se apoiar no banco para respirar. Ele está empapuçado de suor. Meio sem graça, logo se vira novamente para a primeira janelinha ao lado e fica a observar a quase paisagem, como se nada fosse com ele. Muito provavelmente foi salvo pela precariedade das portas do vagão, que são "semi-automáticas" no mau sentido, pois só funcionam de vez em quando. Em péssimo estado de conservação, corroídas e caindo aos pedaços, as portas mais parecem pedaços de mobília que foram adaptados ali para substituir provisoriamente as de verdade. Um cidadão, que ajudou a soltar o moço de muletas, mostra onde está o "equipamento de segurança" para casos emergenciais como esse. Uma alavanca enferrujada, que fica ao lado de cada porta: é tudo o que há para tentar evitar uma tragédia. O homem, um aposentado que há muitos anos viaja naqueles vagões, diz que, ao puxá-las, as portas devem ser abertas automaticamente. O problema, além, é claro, da visível fragilidade do equipamento, corroído pela ferrugem, é que a alavanca está escondida debaixo dos bancos, sem indicação nenhuma do que é, tampouco de como funciona. Após uma rápida conversa conosco, o senhor, que diz que mora na Vila Peri, desce na penúltima parada.

Mais a frente do vagão, um homem, com um bebê no colo, nos chama a atenção. Aparenta ser um jovem pai que provavelmente levou a criança para alguma consulta médica e agora volta para seu bairro. O terço em sua mão esquerda denota serenidade. O bebê parece ter puxado ao pai em seu comportamento: muito calmo, não esboça sequer uma reclamação durante toda a viagem. Quieto, ele apenas observa enquanto se acalenta no colo do pai, que, por sua vez, carinhoso, conversa baixinho, como se o filho já pudesse entender tudo o que sai de sua boca. "Mas será que são mesmo pai e filho?" Bem, o amor recíproco não deveria deixar dúvidas, mas não há como saber sem perguntar.. É uma imagem bonita de qualquer forma. Principalmente naquele ambiente um tanto desolado, esquecido por muitos.

Na estação de Caucaia, embarcam dois homens. Um deles com uma camisa azul, onde está escrito "Gazeta do Pará", diz para o outro que, certa vez, ouviu o comentário de uma turista: "esta cidade (Caucaia) não tem prefeito??". Ela se referia, segundo ele, ao péssimo estado de conservação daquela estação de trem. O rapaz lembra para o outro que os trens da cidade de Natal são muito mais bem conservados. O outro, que veste um uniforme da Unimaq, loja autorizada da Honda em Fortaleza, ressalta que os vagões novos ainda são piores do que os velhos. "O novo é quente viu, irmão.". O de camisa azul começa a falar sem parar. Com bom vocabulário, ele recomenda ao outro um documentário que viu na Rede Cultura. "A linha do trem: o caminho esquecido", era o título, de acordo com ele. Tudo a ver com a idéia que à essa altura já formulamos a respeito daquele passeio.

No caminho de volta, poucas anotações. Desperta interesse apenas a mudança de posição do carro que puxa os vagões, se engatando novamente na composição, agora à nossa frente. O encaixe provoca um estrondo que assusta alguns passageiros mais incautos. O último vagão na ida passa a ser o primeiro na volta.

A viagem de retorno é mais rápida. O trem, sabe-se lá o porquê, se locomove mais rápido agora. Tempo necessário apenas para que compremos uma mousse de maracujá, que um homem está oferecendo no fim do vagão. Mousse essa que quase vira história quando eu aperto demais a embalagem, fazendo-a sacar para fora e, por milagre, cair novamente dentro do recipiente, numa manobra impossível. Rimos bastante ainda enquanto eu terminava de comer a guloseima.

Em poucos minutos, estamos novamente na João Felipe. Sentimos que há um espaço a menos a completar em nossas vidas. Finalmente andamos de trem na cidade de Fortaleza. Uma história a mais para aplacar um pouco a nossa ignorância do mundo. Um mundo que começa naquelas linhas. A linha de Caucaia hoje, para nós, foi uma forma de perceber que há erros imperdoáveis na vida, como aquele que cometíamos esquecendo algo que sempre foi nosso. Felizmente, tornou-se possível voltar atrás nesse erro, que se assemelha ao desatino de um pai ao renegar um filho que não lhe parece bonito. Mas o terminal ferroviário João Felipe - assim como aquele trem - é nosso. Nosso filho, pai, mãe, irmão... Nossa história, que se passa todos os dias sobre aqueles trilhos e jamais há de ser esquecida novamente.